Chiquinha era moça ajeitada. Algumas prendas.
Trabalhava até dizer chega, apesar da verdura dos anos. Zunhava daqui e dali
para ganhar uns trocados. Muitas qualidades e alguns defeitos. Um deles: era
dada a contar vantagens para estranhos. Quantos se encantaram ao ouvirem
histórias das fazendas do pai da moça em Goiás e no Mato Grosso! Outros tantos
ficaram atraídos pelos seus atributos donzelísticos e pelos potes de ouro
armazenados no porão da sua casa. E alguns, ainda, doidos por ver a nossa
Chiquinha trajando os lindos vestidos que ela tinha guardados nas suas grandes
e centenárias arcas de jacarandá.
Só nós, os seus conhecidos, sabíamos que a
verdade não era bem assim. Chiquinha não tinha pai e nem fazendas. Morava numa
casinha de pau-a-pique, de dois cômodos, coberta de sapé e com piso de chão
batido. Sem porão, portanto, para guardar o ouro que não tinha e sem espaço
para as centenárias arcas de jacarandá dos seus devaneios.
Foi aí que nós, lá na minha terra, inventamos de cantar aquela
musiquinha, tomando o cuidado de trocar o nome pra Chiquinha não ficar triste
com a gente.
Sinhaninha
diz que tem
Sete
saias de balão
É
mentira ela não tem
|
Nem
dinheiro pro sabão
Ha! ha! ha!... Ha! ha! ha!...
Nem dinheiro pro sabão!...
|
Mas apesar dessa vantajeira que a moça contava, isso não a diminuía aos
nossos olhos. E Chiquinha foi crescendo. Como todos nós. Uns mais, outros
menos. Mas a cada ano que passava ela se enchia mais de carnes, rijas e saudáveis.
Sempre mais bonita e mais desejada pela machaiada da minha roça. Os poucos
panos que usava pra cobrir o essencial tornavam-na mais apetitosa e vistosa
pros nossos olhos.
A mãe era sua companheira. Dadora de
conselhos que Chiquinha seguia à risca. Mãe passara por muitos homens, de mão
em mão, e continuara sempre na mesma merda. Mas aprendera a lição. Não queria o
mesmo pra filha: cuida da priquita, fia! Se ocê discuidá e arguém passá a mão,
seu nome cai na boca do povo!
E
Chiquinha cuidava. Ninguém, a não ser o Zelão, vira a periquita da moça. O
felizardo tava de vigia, escondido, cochilando, na beira do córrego. Ela foi
buscar água. Calor de rachar. Olhou prum lado, olhou pro outro. Viu ninguém.
Tirou pano por pano e caiu n’água. Zelão disse que quase teve um troço no meio
da moita de taboa. Não acreditava no que via. Emoção muita. Só entusiasmo.
Chiquinha nadou, nadou e saiu. Demorou a vestir os paninhos. A tempo de Zelão
ver detalhes dos guardados dela. Cabelo ali era mato, sobrando para os lados
quando ela vestiu a calcinha vermelha. E, naquela pecinha, um buraco na frente
por onde escapava um tufo dos cabelos rebeldes. Pretinhos. Assim falou Zelão. E
Chiquinha, sem saber do que sabíamos, com toda aquela falta de panos, passava
por todos nós, requebrante e saliente. E não tínhamos motivo pra falar nem um a
de Chiquinha. Aí, depois de certo tempo, ela viçou tanto que diferençou da
gente. E cada qual de nós sempre mais doido de vontade de passar a mão naqueles
guardados, com inveja do Zelão. Mas cada um mais sonso que o outro, quietos,
esperando os acontecimentos.
E
Chiquinha passava por todos nós, sempre ignorando um por um. Não se juntava com
ninguém. Foi aí que, em reunião decisória, resolvemos deixar de chamá-la de
Chiquinha. Um mulherão daqueles, tão bem servida de coxas, trazeiro e peitaria
não podia mais ser Chiquinha. Bastava ser Chica. Bem que o Juquinha dizia ah,
companheiro, eu muntado numa ema dessas atravessava as campinas da emigê em
três pinotes. É só ela dá uma chancha pr’eu!... E já que ela não queria
ajuntamento, contentávamo-nos em apreciá-la de longe, por detrás das moitas de
assa-peixe, das touceiras de bananeira, dentro das cacimbas, de cima do
barranco, e até do galho do ingazeiro lá da beira do córrego onde ela ia buscar
água... Sempre tinha um representante nosso para cuidar da vida da Chica. E
continuávamos não podendo dizer um a da sua donzelice. Apenas, nos nossos
momentos solitários, era só da Chica que nos lembrávamos e fazíamos cada qual
as maiores indecências com ela. E nossa paixão recolhida mais aumentava. E, porque
recolhida, sem freios.
Foi
aí, nessa altura do campeonato, que, para nosso horror e tristeza, correu a
notícia. Chica, a nossa Chiquinha, estava de namorado. Gente de fora. Um
magrelo da cidade, cheio de brilhantina, cabelo alisadinho com glostora jogado
pra trás, paletó de quadradinhos, todo faceiro e dengoso. Chegou com carrada de
presentes. Batom, ruge, água de cheiro, perfume de xibiu... Aí Chica ficou
apaixonada. Diantou nada. Durou nem uma semana. Botamos o safado pra correr.
Não podia passar pela nossa cabeça gente de outras bandas vir namorar nossa
Chica.
Ficamos
de sobreaviso. Afinal, parece que ela descobrira gosto e cheiro de homem. Não
ia mais ficar parada. Tínhamos certeza de que com aquele fôra só mão-na-mão.
Vigiávamos tudo. Mas e com o próximo? A não! Chica estava fazendo a gente
sofrer demais da conta, sô!...
O
segundo chegou. O Arnóbio. Lá do Sapé. O safado era conhecido nosso. Mais
caipira que nós, caipiras da gema. Só que, desconfiado, cara de poucos amigos,
chegou todo metido e convencido. Tinha a pretensão de falar bem e vivia
quebrando a língua nos pronomes. Matava a gente de raiva o pedantismo do homem.
Começou a namorar a Chica quando ela trabalhava no seu Brochado, o homem mais
rico da nossa terra, com casa cheia de guerigueri. Mulher do fazendeiro, cheia de não-me-toques, com muita chiqueza.
Dona Argentina resolveu fazer almoço para a família e conhecidos que vinham da
capital e convidou Arnóbio para fazer parte da mesa. O destrambelhado, ao invés
de inventar desculpa e cair fora, aceitou. Chica ajudou a fazer o almoço e foi
convidada a ir pra mesa, ao lado do coió. Mesa grandona muito chique, com
toalhas de renda que iam até quase o chão. Talheres finos, pratos de louça,
copos de cristal, muita farofa, muito frango, arroz colorido, pururuca,
macarronada e o diabo-a-quatro. Tinha também suã de porco no meio de arroz
branco. E foi aí que o Arnóbio se deu mal. Não resistia a um pedaço de suã bem
gordo. Mas como não sabia usar faca e garfo, juntou aquele torete com a mão e
roeu toda a carne em volta do osso. Ficou até babando gordura. Assim disseram
depois. E, com dó de deixar o miolinho, tão gostoso, tafuiou ali o dedo
mindinho da mão esquerda e foi empurrando a melequinha em direção à boca,
chupando do lado contrário e fazendo um barulho não muito educado. Dona
Argentina e convidados entreolhavam-se incomodados. Dizem que até a Chica se
incomodou . E Arnóbio, achando que tava agradando ante tantos olhares,
continuou a chupança. Só que o dedinho foi empurrando e se arrochando dentro do
buraquinho da suã. De tanto forçar, inchou. E grudou. E ficou preso. Meio sem
jeito, quando a turma se distraiu, ele enfiou as mãos debaixo da mesa para
fazer força e arrancar o dedo daquele maldito osso. Forçou, forçou e nada.
Dedinho cada vez mais inchado. Para não fazer muito feio, Arnóbio deixou a mão
esquerda debaixo da mesa e continuou a comer, pensando numa solução. Só que o
coitado não sabia, nem podia desconfiar que o leão, um baita dum fila, com uma
fome danada, estava debaixo da mesa esperando alguma migalha. Leão nem se deu
ao trabalho de pensar. Abocanhou aquele osso oferecido e se mandou. Arnóbio não
teve outro jeito. Recurso era se mandar atrás arrastado pelo leão. Mas e a
espora brilhosa, como que de prata, que ele não tirava do pé nunca? A espora
prendeu-se na toalha e leão saiu arrastando aquilo tudo e mais alguma convidada
lambuzada de macarronada com farofa que não teve tempo de escapar. Até hoje
ninguém sabe como o Arnóbio se livrou do leão. O que se sabe é que ele, de
tanta vergonha, nunca mais apareceu por nossas bandas.
Ficamos
um bom tempo sem ter concorrência e motivo para grandes preocupações. Chica
chegou até a começar a olhar de trivela para alguns de nós. A gente tava
ficando animados.
E
não é que apareceu o terceiro? Era junho. Um tal de Evaristo, a quem passamos a
chamar de Varistão. Um bitelo dum homem, maior que a Chica, bigodudo, gordo e
com garrucha na cintura. Ficamos desencorajados de agir com um homem assim. Aí
desgringolou tudo. O namoro correu solto. O homem experiente passou a ensinar à
moça coisas do arco da velha. Trouxe pra ela muitas caixas de pó-de-arroz,
espelhinho de bolso e paninhos de paquete. Parece que conselhos da mãe valiam
mais nada. Chica não ficava mais só no mão-na-mão. Aprendeu manhas e, embora um
pouco sujigada, já estava no mão-naquilo e sendo buzinada. Assistíamos
agoniados a todo o desperdício. De longe, à luz da lua, sempre tinha um para
dar o relatório. Com o passar dos dias ficávamos vários, tiritando de frio, ora
de cima do barranco, ora atrás das bananeiras, até em cima da casinha da Chica,
vendo o movimento dos dois. Era assim: a mãe dava sono cedo: fia, demora não,
tá? Tá, mãe!
E ela lá, beijando, se esfregando e se
coçando naquele homenzarrão armado. O diabo do homem enfiava a mão debaixo da
sainha da moça alisando com aqueles
dedos nojentos aquela coisa tão sonhada por nós. Sem nenhum respeito pelos
guardados dela. Alisava, alisava e Chica quietinha, quietinha, só sentindo. Na
manha. Mais mansa que a cabrita do Tié ou a porca do Pitácio que todos
conhecíamos. Em certo momento Chica o
agarrava com ganância, parece que com fogo em algum lugar. Ele tirava a mão
daquele santuário, cheirava, cheirava e se abria num sorriso deste tamanho,
debaixo do bigodão encrespado. E abraçados ficavam outro tempão, esfregando
coisa com coisa.
Isso eu vi. Não é pra contar vantagem não,
mas eu vi. E na primeira vez que vi, senti a dor doída da traição. Todos
passamos a andar cabisbaixos, com falta de assunto, naqueles frios dias
tristonhos. Impressão que o mundo ia
acabar lá na nossa roça. Até as árvores andavam tristes, parece que prontas a
se negarem a dar frutos. Zé Pretinho se declarou disposto ao suicídio. Tadeu de
Cráudio disse que ia embora. O Juca do Afonso, de todos nós, é que era o mais
conformado. Mas também a mulher dele não tinha fama das muito boas não. Houve
companheiro que andou beliscando nela. O Nildenor chorava e fungava o dia
inteiro garrado no cabo da enxada. O Tié parou de comer e de trabalhar. Greve
geral. Isso pra comentar só alguns casos.
Dá para entender a grandeza da nossa
tristeza. Paixão e sofrimento entre a machaiada da nossa roça. Solteiros e
casados, mais novos e mais velhos, dividíamos fraternalmente os mesmos sonhos
pela mesma mulher. Fiquei sabendo até que muitos deles, na hora do vamo-vê com
a patroa, só tinham pensamentos pra Chica. Usavam a patroa como simples
depositório enquanto o pensamento se devaneava pelos predicados da nossa
donzela.
Carecia reunião. Tinha que ter solução
problema tão grande. Não podíamos deixar um homem de fora tomar conta da nossa
Chica colocando-a debaixo da asa daquele jeito. Ela tinha que deixar de ter
olho grande e escolher um de nós. Mas como botar o homem pra correr? E aquela
garrucha com cabo de marfim sobrando na cintura? Foi aí que, na reunião, o Zé
do Orico contou gente! O home tem medo de sombração! Certeza! Vi ele falando lá
na venda do Severo onde foi moiá a güela. Parece que o capeta já apareceu
pr’ele na forma dum gato preto!
Todo
mundo suspirou meio aliviado. Solução chegando. Tínhamos que traçar o plano
pr’aquele homem parar de fazer poeira na nossa porta e deixar de humilhar nosso
povinho sofredor.
Daí pro plano foi rápido. De tardinha já estávamos
com os gatos presos dentro do saco. Pra mais de quinze. Cada um mais bravo que
o outro, sem entender aquele aprisionamento. Esperando Varistão chegar trotando
na sua mula baia. Ele veio no lusco-fusco de uma noite de sexta-feira. Cumé que
vai, dona Mundica, cumé que vai meu amô? Vô entrá não. Carece preocupá não,
dona! Aqui tá muito bão... Homem educado e meloso o Varistão. Mas só perto da
velha que não desconfiava nem um por cento do que o desgramado aprontava com a
filha, paixão nossa.
Mal
o negrume da noite, noite com prenúncios de geada, completou, sono da velha
chegou. Vô durmi, boa noite, demora não, fia. Tá mãe. E ficaram os dois soltos
no mundo. Lamparina a querosene pendurada no prego do esteio iluminando o
casal. Mão boba começou a rolar. Mão-na-mão, mão-naquilo, aquilo-na-mão...
Platéia atenta, tremelicante de frio, olhos secos de estatelados, mas cada um
no lugar mais privilegiado que o outro. Boca seca, ansiedade, mas todo mundo de
pau duro. Sonhando. E o Zé Pretinho, disposto a morrer pela causa, atrás da
quina da casa. Calça preta, sem camisa. Bobagem falar que Zé Pretinho era
preto, confundindo com o breu da noite. Os gatos, depois de quase duas horas
presos no saco, estavam mais conformados. Zé Pretinho abriu uma nesguinha do
saco e pinchou lá dentro o pó de mico. Rapidinho subiu no teto da casa, do lado
contrário onde estava o casal fazendo indecências e jogou o saco por cima. Ele
ficou lá pendurado, amarrado com laço bambo, logo acima da cabeça do Varistão.
Quando Zé Pretinho, já entre as moitas de bananeira, atirou o pau, os gatos já
davam sinal de inquietação. Pó de mico fazendo efeito. Mas Varistão na via
nada, só preocupado com as partes moles da Chica e fazendo fonfon. Assim que o
pau bateu com toda a força na trouxa de gatos, o nó da corda desamarra e solta
o saco de boca aberta em cima do Varistão. Nessa hora, não fosse a gente
pessoal muito ordeiro e respeitoso, teríamos irrompido numa salva de palmas.
Foi tudo muito bem feito. A gataiada aprontou tanta zueira, ante o susto da
paulada e, soltos, se agarraram com o Varistão. O homem, sem entender de onde
vinha tanto miado e tanta unhada, deve ter pensado é o demo e mal teve tempo de
subir na mula, ainda com um ou outro gato grudado nas carnes, sumiu no mundo. Chica ficou feito barata
tonta, andando pra lá e pra cá no terreiro, com a cabeça cheia de pontos de
interrogação. Até que resolveu entrar, ressabiada com o acontecido. Saímos
todos de fininho, pois que somos muito discretos, e fomos comemorar a vitória na bitaca do
Severo. Cada um com a güela mais seca que o outro e entaguidos pelo frio. Mas
alegres com o sucesso da empreitada. Na comemoração da vitória, o Zé Pretinho
criou moda:
Atirei
o pau no gato-to
Mais
o gato-to
Não
morreu-rreu-rreu
Dona
Chica-ca
|
Admirou-se-se
Do
berro, do berro
Que
o gato deu:
Miau!....
|
Essa moda virou moda e até hoje é cantada para
comemorar nossa vitória sobre o Varistão.
E a Chica? Chica continuou com todos aqueles seus predicados à mostra. E
a gente sempre querendo pôr a mão naquela falta de panos. Mas todo mundo muito
respeitosos, muito no silêncio, enquanto oportunidade não aparecia. E um dia
apareceu. Tadeu de Cráudio inventou de fazer serenata pra Chica e cantou uma
moda toda esquisita dedilhando seu violão desafinado:
Teresinha
de Jesus
De
uma queda foi ao chão
E
acudiram três cavalheiros
Todos
três chapéu na mão
O
primeiro foi sem nome
O segundo o Arnóbão
|
E
o terceiro foi Varisto
Que
a Teresa deu a mão
Mas
de nada adiantou
Pois
que ela os recusou
Mas
eis que chegou a hora
Que a Teresa se apaixonou!
|
Essa música também virou moda na nossa roça. Chica sentiu-se a verdadeira
Teresa. Foi a conta dela ouvir a seresta e declarar-se vencida e apaixonada.
Por todos nós. Não éramos o primeiro, nem o segundo e nem o terceiro, mais foi
pra nós que a Chica deu a mão e outras coisas mais, tão sonhadas. Quem tinha
conheceu mais uma e quem não tinha aprendeu a conhecer mulher. Organizar o dia
de cada um no caderninho azul não foi fácil, mas nada que a paixão comunitária
a uma só causa não pudesse resolver. Hoje vivemos em santa paz. Todos muito
alegres com o amor da Chica que anda cada vez mais bonita e atendendo a todos nós
com muita presteza e ganância. Porquinha do Tié e cabrita do Pitácio é que,
ouvi a boca pequena, andam muito desconformadas com a situação.
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