O menino brinca sozinho à sombra do ingazeiro. Em
silêncio aparta seu gado separando os bezerrinhos. Os bois são deixados de
lado. Já estão cangados, prontos pra trabalhar. Têm que ir buscar madeira.
Terminar de arrumar o curral destruído na última chuva.
Na sua cabeça tudo isto é realidade. Tem que cumprir
com sua obrigação pra ficar satisfeito. Mas as vacas e os bezerrinhos são
laranjinhas caídas com a ventania que veio antes da chuva. Os bois são sabugos atrelados
aos pares. O curral não passa de um lugar bem limpinho cercado com pequenas
varas de laranjeirinha que a chuva e o vento sempre destruíam.
Sozinho mas ri e conversa com suas vacas, seus
bezerros e seus bois. Sorriso triste mas tem que sorrir mesmo assim porque, se
ficar de cara ruim, a Mimosa pode não dar leite ou o Barroso pode amuar no
caminho quando for buscar madeira. Conversa feita de zunzuns. Só ele e seus
animais entendem.
Por um momento ele pára, não mais ri nem conversa.
Quieto, ajoelhado no chão, os olhos se fixam nos animaizinhos encantados e
sonha. Quando crescer, quer curralama bem grande, com muitas vacas, todas
brancas. Os bois não tem importância se forem malhados, mas com chifres bem
grandes. Quando for à cidade, quer ver todos olhando para ele, com inveja e
admiração por ser o dono de boiada tão linda. Ninguém rindo e olhando com
pocaso como quando vai com o pai levar, no carro de boi, arroz para limpar. O
pai não pode ter os bois todos iguais. Não são como os do sô Severo que é
remediado. Dos bois do pai um é preto, outro malhado e dois brancos. Um mais
branco que o outro, assim meio bazé. Gostaria bem de ter ferroado aquele
açougueiro bigodudo que perguntou ao pai se não queria vender o Estrangeiro.
- É um boi muito graúdo e pode render muita carne!
Disse ele.
O gorducho ficará marcado para sempre, nunca será
perdoado. Principalmente porque menino ouviu aquele marmanjo dizer para os que
estavam numa rodinha, decerto fuxicando uns com os outros, como fazem as
mulheres que vão lavar roupa na cachimba.
- Roceiro é assim mesmo. Ignorante. E quanto mais
velho, mais burro fica. Ispia só, um boi erado como aquele só presta pra carne
e mais nada e o bocó não quer vender, dizendo que é desse moleque. Seria muito
melhor que me vendesse o animal e fosse comprar botinas, roupas novas e
lombrigueiros pr'este franzino que deve estar lotado de lombrigas!
Desaforo! Aquele lambisgóia merecia só uma ferroada
não, mas punhadão! Que vontade de ser grande e dar-lhe uma pisa pra nunca mais
dizer uma coisa dessas! Onde já se viu chamar o pai de ignorante e bocó?!... O
pai era inteligente até demais! Vivia lendo jornal lá na bitaca pra cambada da
roça saber das novidades de tudo quanto é lugar. E ele, primeiramente não era
moleque e segundamente, será que naquele dia estava tão mal-arrumado assim?
Sempre ia à cidade com roupinha melhor, sem arremendamentos. De saco tingido de
azulão. Saco de farinha de trigo ou de açúcar. Mas limpinha sempre. Botinas
gostava não. Calejavam os pés e espremiam seus dedos naqueles bicos finos.
Lombrigas? Tinha muitas, mas ninguém sabia. Se contasse em casa era
lombrigueiro na certa e nisso preferia nem pensar. Se a mãe descobrisse suas
lombrigas, teria que acordar de madrugada para beber aquela gororoba horrível e
se não engolisse tudo, apanhava. Pior era ter que ficar dia inteiro de cama e
fazendo necessidades no urinol, coisa que o matava de vergonha. Como será que o
açougueiro descobrira que ele tinha lombriga? Como sabia? Homem da cidade é
mesmo mais inteligente, deve ser isso...
Menino queria também, quando crescesse, ter uma mula
igual àquela do João Mulalisa. Quando estava montado nela, era o homem mais
bonito do mundo. Isso menino sabia porque ouvira conversa da Jandira com a
sirigaita da Maria da Nica. Queria ser igual ao João Mulalisa para ouvir sua
Lurdinha falar pras donzelamas de roda:
- Óia como ele é bonito!...
Que pena não ser grande! É... O chato é que ele era
pequeno e a Lurdinha grande. Mas como era bonita!... Como era! E que ele
gostava dela... Como gostava! Lurdinha tomava conta da venda onde ele adorava
ir comprar breguestes só para ficar olhando para ela, assim meio de rabeira,
quando a moça não estava vendo. Se visse, descobriria logo seu amor. Poderia
contar pra mãe dela... Outros ficariam sabendo... Fofoca na certa. E ririam
dele. Ainda mais que ela tinha um namorado, o Zeca Pagodinho, e se ele
soubesse... Nem é bom pensar! Mas que tinha raiva do Pagodinho, isso ele tinha.
Principalmente porque o rapaz era muito mandrião e antipático, gostava de
caçoar dele, puxar o cabelo da Lurdinha e alisar as pernas dela quando ninguém
estava vendo. Isto o Zeca Pagodinho pensava, mas menino via tudo e tinha
vontade de contar pro sô Severo, o padrasto da moça. Não contava só porque ia
fazê-la tomar uma tunda e isso ele não queria. E também não tinha coragem de
contar pro sô Severo não. Ele era muito bitelão, da cara ruim, careca, tinha
bigode e, segundo dizia o povo, muito munheca. E, como o pai ensinava, povo não
erra: quando o povo fala é, foi, ou será. Queria aproximação com sô Severo não.
Quando tivesse a mula, compraria arriata novinha,
chapéu de palha igual àquele que padim Zé Maricota usava quando ia à cidade a
cavalo. Compraria também calça de homem, - podia bem ser calça rancheira -,
camisa volta ao mundo, branca, de mangas compridas e botas iguais àquelas do
Ocride: pretonas e brilhosas, rachadas na frente do cano e amarradas com longas
tiras de couro. As botas mais bonitas que tinha visto. Para comprar tudo isso
seria muito difícil não. Só crescer e plantar arroz no roçado novo. Tinha preguiça
de capinar mas o pai ajudaria. Quando colhesse, venderia e compraria o que
quizesse. Ria sozinho pensando na inveja que ia fazer nos outros meninos quando
montado na sua mula baia com arriata novinha. E ele, de roupa toda nova, com a
Lurdinha na garupa... Aí iria com ela à cidade, chupariam muitos picolés e todo
mundo olharia para eles e teria inveja vendo a felicidade dos dois.
Menino sonhava.
Agora não sonha. Dá um tempo. Está ouvindo uma
conversa diferente dentro de casa. Certeza que não é a mãe com as meninas.
Precisa ficar prevenido pra ninguém de fora vê-lo brincando de vaquinha.
Poderiam rir dele. Morreria de vergonha. Melhor ver quem está conversando com a
mãe para escutar do que estão falando. Sempre é bom saber novidades da roça,
aprender coisa nova ou ouvir algum segredo. Mesmo sem ter entrado na cozinha já
sabe que é a Joaninha que está lá dentro. Vizinha que mora mais perto. Vive com
o Zé Ramo. Dizem que não são casados. Mas também ela é muito feia, já está
velha, parecendo maracujá de gaveta. Quem casar com ela não deve ser muito
ajuizado não. Mas como eles podem morar juntos então?
Meninas brincando no terreiro avisam pra não entrar.
- Menino num pode escutá conversa de gente grande!
- Vai peidá n'água pra fazê borbôia, vai!
- Ih! Óia como ele tá increspado! - disse uma
- Taca uma pedra nele, taca! - disse outra.
- Cambada de futriqueiras impirriadas! - rebateu
ele.
Mesmo assim entra e pelo olhar da mãe sabe que tem
que dar o pira logo, senão apanha depois. Pede pras meninas se pode brincar com
elas. Pode. Com a condição de não mexer em nada do que é delas e que trabalhe,
já que é o homem da casa. Mandam-no buscar macaúba e quebrar as castanhas para
poderem almoçar. Ele vai saindo e... Adeus almoço! Não tem graça brincar com as
mulecas não. Ainda mais se é só a cambada de casa. Fica obrigado a trabalhar e
não ligam nem pros seus palpites. Quando tem menina doutra casa é melhor. Vira
marido, o mandão e não precisa trabalhar. Fica no bem-bom, do jeito que o diabo
gosta.
Deixa a cambada sem almoço, sobe no ingazeiro e
começa de novo a pensar. Joaninha é feia. Banguela. Manqüeba. Mas como ela tem
coragem de morar com o Zé Ramo, ainda mais se não são casados? Dizem a boca
pequena que ele já esteve meio lelé, meio zureta. E quando fica tonto, cheio da
canjebrina, credo! Parece bicho, sai xingando todo mundo, andando sem rumo,
dando tiro de filobé pra tudo quanto é banda. Muito perigoso. Menino nem pode
sair de casa. Borra de medo e a mãe também não deixa. Diz que criança que sai
de casa Zé Ramo pega.
Nisso menino desce rápido da árvore. Mãe tá
chamando. Chega correndo pra ver o que ela quer.
- Vai lá na venda comprá açuca e café! Mas cuidado,
um pé lá e outro cá, viu?
Sai alegre. Vai ver a Lurdinha e trocar umas prosas
com ela. Quem sabe ela não dá uma bala pra ele como fez noutro dia? Mas se a
moça colocar aquela mão maciinha na sua cabeça e lhe sorrir aquele sorriso
lindo vai ser muito melhor. Aí é que ficará satisfeito. Tomara que a mãe dela,
aquela urubua velha, não esteja por perto. Se estiver, não pode ficar olhando
pra sua princesa, senão a bruaca desconfia e conta pros outros.
Chega à venda com o coração batendo forte de cansaço
pela corrida e pela emoção. A Lurdinha está lá. Ele quase sorri mas tem medo
dela desconfiar. Fica serioso. Pede o açúcar e o café pensando no que ela vai
fazer quando ele for sair. Tomara que pergunte muita coisa para que ele possa
enfronhar uma conversa. Mãe vai danar se demorar mas só um tiquinho tem
problema não.
Desta vez menino saiu triste da venda. Lurdinha não
lhe sorriu, não pôs a mão na sua cabeça, não lhe deu bola e nem fez nenhuma
pergunta. Apenas: "o que ocê quer?" e "tá pronto!". Vai pra
casa triste e frustrado, quase chorando. Sonhos de alguns minutos atrás foram
por água a baixo. Lurdinha só podia estar com algum problema.
Por que sempre acontecia isso com ele? Nada do que
pensava dava certo. Se planejava nunca podia executar seus planos. A mãe
proibia tudo com medo de que se machucasse ou que sujasse a roupa ou que se
afogasse no córrego e outras tutaméias parecidas. A vida para ele não era tão
alegre como a dos outros meninos não. A dele era diferente. E sozinho procurava
encontrar explicações. Inúmeras perguntas lhe surgiam à cabecinha já cheia de
pequenos problemas e grandes interrogações.
Sua maior tristeza era não ter um irmão. Se tivesse
fariam tantas coisas juntos! Onde um fosse o outro iria. Nunca mais apanharia
de outro menino. Dos dois todos teriam medo. Por que não tinha um irmão? Ele
era mesmo diferente. Só ele tinha que brincar sozinho, brigar sozinho, viver
sozinho e sonhar sozinho. As irmãs... Tinha raiva delas. Ignorava porque
existiam meninas no mundo.
- Elas só vive pr'amolá e fazê giriza na gente. Tão
bão se uma sesse home!... Quem dera qui'assim sesse!...
Sonhar é gostoso mas não adianta ficar pensando
nessas coisas. E ele novamente volta aos seus boizinhos e vaquinhas. E sozinho
continua à sombra do ingazeiro.
Pai bota menino na escola. Escola da cidade. Cidade
pequena, escondida debaixo da Serra do Urubu. Escola da roça era rancho
encafuado lá no meio do cerrado. Quando chovia, professora e meninos ficavam
debaixo das mesas para molharem menos. Se vinha vento forte, pegava a cobertura
de sapé e levava pra longe espatifando tudo. Sem contar que os moleques, de vez
em quando, botavam fogo na escola e a queimavam num fogaréu só. Dificuldade
danada pra todo mundo. Aí, depois de muita pasmaceira, mutirão. Outra escola
construída. Pai queria menino em escola organizada para aprender tudo muito
direito.
- Pai, compra um cavalo pra mim? Num tô güentano de
dor nas perna!
Isso depois da primeira semana de escola. Sonho de
ter cavalo, dos bonitos, quase se realizando. Não tinha arriata novinha, nem
chapéu, nem calça rancheira comprida, mas já poderia ter aquele cavalo dos seus
sonhos, tão bonito quanto a mula do João Mulalisa.
Duas semanas depois, quando chegava a tarde,
tristeza se debruçava no seu coração. Não podia nem pensar no dia seguinte
quando tinha que levantar de madrugada, comer arroz quentado ou um lambedor que
fazia rapidinho, vestir o uniforme feito de saco tingido de azulão e se mandar
a pé. Légua e meia até a cidade. Nas pernas de oito anos a dor ficando pior.
Tristeza maior depois da dor, o medO. Morro do Pião. Tudo quanto era sombração
que alguém viu foi no Morro do Pião. Mula-sem-cabeça, saci-pererê, curupira,
mãe do ouro, até o pemba... Tudo no Morro do Pião. Foi lá que o maleiro quase
matou a tia do Jura com pedradas. Pedras que tirou da linha do trem. No Morro
do Pião também que o Sinfrô com o Tunicão se encontraram da última vez e foram
dando facãozada um no outro até não agüentarem mais. Pai ajudou a carregar os
dois. Difícil arrumar espaço outra vez na barriga do Tunicão para as tripas que
teimavam em ficar de fora, depois de misturadas com capim seco e estrume de
vaca.
Menino passava Morro do Pião quando dia pispiava e
últimas estrelas sumiam no céu. Estrada de carro de boi acompanhava linha do
trem entre Morro do Pião e o pantame. Sofrimento grande escolher pedaços
daquela que julgava menos perigosa. A cada instante ia por uma. Corria um
tanto. Andava outro tanto. Parava. Tentava decifrar os barulhos: fungado de
vaca, fuzacada da macacada, curicaca chamando macho, calango atacando rato nas
moitas e até peixe tchibumbando n'água do pantame. Ia de fasto. Ia de banda.
Tremia. Suava frio. Rezava.
- São Bento d'água benta, Jesus Cristo no altar,
arreda bicho mal do caminho, deixa filho de Deus passar.
Oração foi mãe que ensinou. Dos bichos estava livre.
Mas e as assombrações? E os que morreram, não tinham descanso e apareciam no
Morro do Pião, sem dar sossego pros viventes? Negócio era rezar. Menino nunca
rezou tanto na vida. Promessas pra tudo quanto é santo.
Quando passava do Morro do Pião era alívio só.
Ficava alegre. Da entronquiada pra frente encontrava outros meninos que iam
também pra escola. Batendo papo. Contando vantagens.
- Medo? Eu? De jeito nenhum! Niquis! Posso passá
meia noite no Morro do Pião que num tô nem aí!
- E as sombração?
- É bacho! Num querdito!
Bem dentro do coração sabia da sua mentira e pedia
perdão a Deus. Mas não podia se mostrar fraco. Tinha que ser homem.
Todo dia esse sofrimento. Se cavalo tivesse... Companhia.
Medo acabava, menos tempo, nem precisava acordar tão cedo. E lá na escola... Bem
que tinha umas meninas bonitas. Não tão bonitas quanto a Lurdinha, mas bastante
lustrosas, bem adubadas e regateiras. Iriam todas olhar para ele quando
chegasse montado no seu belo cavalo.
Na terceira semana a mãe contou um segredo:
- Seu pai vai comprá um cavalo pr'ocê. Num conta
ainda pra suas irmã, senão ele fica sabendo e pode num gostá. Ele qué fazê
surpresa.
Era sábado. Pai tinha saído. Menino vai pro
ingazeiro. Começa o sonho. Alegria demais. Vai ter seu cavalo. Primeira pessoa
do mundo que verá menino montado no seu animal vai ser Lurdinha. Será que ela
vai gostar? E se pedir para dar uma volta?
- É craro Lurdinha, meu amô! Vem, munta na garupa!
Cuidado, segura na minha cintura bem apertadinho! O bicho é brabo!
Ele enfia espora na anca do bicho que sai pulando
com os dois. Ela toda agarradinha nele. Longos cabelos encaracolados voando ao
vento. Vai até a cidade realizar seu sonho. Compra muitos picolés com o
dinheiro do arroz que colheu no roçado. Meninas da escola tudo com ciúme da
Lurdinha. Com olhar atravessado. Queriam estar com ele naquele cavalão branco
com arriata novinha...
- Vamo s'imbora, Lurdinha?
Montam os dois e somem na estrada num trote só,
deixando um rastro de poeira vermelha. Passam pelo Morro do Pião. Medo nenhum.
A galope estrada a fora. Vê flores que nunca tinha visto. Sente o perfume do
mato misturado com o cheiro dos gravatás cacheados e coloridos. Descobre
jasmins do brejo botando pra fora suas flores brancas, enchendo o mundo daquele
cheiro doce que um dia vai dar saudade. Vê codorna, juriti, gaviào, tiziu e passopretos.
Os canários da terra nunca cantaram tão afinados como naquele dia. Encontra até
uma curianga cuidando de dois filhotinhos penugentos ainda no ninho e filhotes
de jacaré tranqüilamente pegando sol entre a estrada e o pantame. Até uma
quaresmeira toda coberta de roxo descobriu lá perto da cruz do avô.
Antes, bem antes de chegar em casa, ouve alguém
chamando. É a mana, lá embaixo do ingazeiro.
- Ô surdo! Cê num escuta? O pai tá chamano! Vem
correno!
Menino nem tem tempo de levar a Lurdinha em casa.
Larga a moça e o seu sonho, pula da árvore no chão e corre pra casa. Pai deve
ter trazido o cavalo. Chega com o coração quase saltando pela boca. Lá está
ele. O seu cavalo!...
- Toma fio, é seu!
O pai entrega-lhe a ponta do cabresto. Menino fala
nada. Não sabe o que falar. Não tem o que falar.
- Leva o cavalo pro pasto! Tá cansado. Manhã cêis dá
uma volta mode acostumá e segunda já pode ir pra'escola nele!
Menino sai puxando seu cavalo. Longe do pai lágrimas
rolam-lhe pela face. De alegria não. De tristeza. Realidade lonjura muito
distante do sonho. Cavalo piquira. Baixinho e barrigudo. Cor sem nome. E a
orelha? Que tristeza aquela orelha murcha! A esquerda. Teve bicheira o coitado.
Era feio e mais feio e desengonçado ficou. Geringonça pura.
Soltou peia do cabresto. Cavalo estava livre. Sentou
no meio do pasto olhando o presente e maldizendo a sorte.
- Agora o que qui vô fazê? Nada num dá certo pra mim
mesmo não! Tinha que sê um mocho? E desse tamaninho? E mais feio que fiote de
urubu cagado? Cumé que vô aparecê na escola montado num pangaré tuído desses? E
as menina da escola, o que vão dizê desse mocorongo? Vão é ri de mim!... Esse
troncha! Nesse trubufu a Lurdinha nunca vai me pedir pra dá uma volta! O merda
nanico num anda digero e num güenta dois trepado nele!...
Na segunda-feira menino vai com seu cavalo pra
escola. Quando chegou, assim meio de fininho, torcendo pra não ser notado, um
moleque dos quintos grita pra todo mundo ouvir:
- Óia o cavalo mocho!
Todos os olhos, uns duzentos e qualquer coisa,
procuraram o cavalo mocho. Acharam. Depois procuraram quem montava o cavalo
mocho. Acharam também. Aí veio a vaia. Longa e barulhenta. Menino não tinha
onde colocar a cara. Ficou todo serioso. Nem olhava de banda. Só pra frente.
Cavalo tava nem aí. Cinqüenta metros que tinham que atravessar em frente ao
pátio da escola se transformaram em cinquenta quilômetros. E enquanto
atravessava a vaia continuava. Unica coisa que conseguiu fazer, enquanto
amarrava o cavalo no esteio da cerca, foi chorar. Chorou copiosa e amargamente
tanta incompreensão. Negou-se a ir pra sala de aula. Dona Zica veio buscá-lo.
Consolamento. Disse palavras de carinho. Teve a sensação de que queria a dona
Zica para ser sua mãe. Passou a gostar mais dela. A primeira professora. Na sala ela deu o
maior sermão na cambada. Menino se encheu de moral. Começou até a achar que seu
cavalo não era tão feio assim. Cavalo virou cavalim.
Passa um ano nessa labuta. Foi-se o primeiro ano de
escola. Medo do Morro do Pião diminuindo. Companhia do cavalim de grande valia.
Mas cavalim sabia que tinham que atravessar o Morro do Pião a galope. Galope
despinguelado. Todo dia. Na escola não tinha mais vaia. Ninguém mais ria dele e
do seu animal. Virou feijão com arroz. Passou a gostar tanto do cavalim, tão
mansinho, tão bonzinho, como se fosse gente. Conversava com ele. Reclamava da
vida e lhe contava causos.
Um dia cobra ofendeu cavalim. Nas férias. Pispiava
dezembro. Animal ficou tão mal que deitou lá no meio do pasto e não conseguia
se levantar. Suava suor fedido a ponto de atrair urubuada. Aí menino mostrou
gratidão vigiando amigo dia todo.
- Urubu a primeira coisa que faz é furá o zóio do
animal mode a morte vim mais digero. Dizia o pai.
- Isso num vão fazê com meu cavalim, pai. Fico dia
todo co'ele. Se morrê num vai sê porque urubu fedorento furô seu ôio!...
- Quá, fio, larga mão disso! Dex'ele pra lá... Deus
sabe o qui faz...
- Deixo não, pai! Gosto demais dele pr'ele morrê à
míngua, de déu em déu!
Sofrimento dos dois durou uma semana. Ia no pasto
reservado. Cortava capim do melhor e levava pro amigo que tava sem apetite.
Levava milho. Sal também. Cavalim comia nada. Só queria água. Buscava água lá
no córrego, lata d'água na cabeça. Pesadona. Cavalim bebia. Com o resto lavava
suor catinguento do amigo. Corpo todo cafubirado. Urubu que se prezasse não
chegava perto. Levava pedrada, paulada, cacetada, chute, até mordida se
preciso... O que fosse mais fácil a cada momento.
Menino de vez em quando chorava em silêncio ao lado
do amigo, acariciando-lhe a clina.
- Num morre não, meu cavalim! Fica comigo! Come um
tiquinho! Come! Óia, tenho mais três anos pra ír pr'escola e só quero ír
co'cê... Num morre, tá? Qué dormi, qué? Dorme sossegado! Urubu nenhum vem te
comê o zóio. 'Xa comigo, tá?
Pai fica com dó. Dos dois. Manda fazer vacinamento.
Vizinhança vem ver sofrimento do cavalim. Todo mundo sai triste com tristeza do
menino. Pai conversa com o compadre Guinelo, o pai da pasmaceira e da lerdeza.
Vizinho mais amigo. Os dois dicocados, picando fuminho de rolo e enrolando
pitinho. Menino matutando, ouvindo fingindo que não ouve.
- Oi cumpá Guinelo, tô com dó do bichinho, sô! Nem
come direito. Dorme quase nada. Num sabia que gostava tanto dele!
- Quem é cumpá? O cavalo ô o menino?
- Craro qui é o menino, sô! Parece qui bebe!...
- Uai, sô!...
- 'Xa pra lá! Dá binga'í! Si o desgramado do animal
sará vô dá um presente pr'ele. Já comprei até um sedém dos mais mió mó fazê
rédia. Ele vai gostá!
- Quem cumpá? O cavalo ô o minino?
- Minino, disgreta! Que lerdeza é essa? Cê num
intende nada, cumpá Guiné?
- Tendê, intendo! É só ispricá direito! E meu nome é
Guinelo, viu?
- Oia, vô presentiá meu fio cu'm'arriata nova.
Baxeiro e pelego tamem. Tudim novim, novim. Vendo uns troço e compro. É uma
dirda qui tenho co'ele. As muleca já ganharo muita coisa. Ele não...
- Tá com razão. Esse menino seu é muito bão,
cumpade. Carece de mais carinho pra compensá sozinhês com que vive...
- Vixi! Lá vem sermão! Niqui eu vendê uns capado e
umas galinha compro as coisa pr'ele!
- Por que cê num compra coisa pr'ele de verdade?
Arriata é bão, tá certo, mas arriata é pro cavalo, num é pro menino... Dá uma
três bacho pr'ele!
- Quá, cumpá Guinelo, dô não! Ispia só. Aqui na
Perdição num tem quem ensina. 'Xa disso! Até as folia daqui vem de fora! E ele
num vai aprendê tocá de ouvido não. É mais mió arriata memo...
Menino já tava alegre. Fingindo que não ouvia
papiada dos dois. Quase ganhou uma sanfona. Mas pai tinha razão. Arriata nova
era sonho de há muito. Sanfona era só supetão. Preferia ver cavalim todo
bonitinho. E ele em cima.
Cavalim recupera. Sara. Fica forte. Até engorda
aproveitando capim novo de dezembro e janeiro e as férias da escola. Cavalim
também tinha férias. Os dois de vez em quando fazem grandes passeios pelo
pasto. Era como se estivessem matando as saudades por um longo tempo passado
distantes um do outro. Uma tarde os dois encontram a Lurdinha na divisa do
pasto com o quintal do sô Severo.
- Oi!... Fui tomá banho lá no corgo. É uma
gostosura! Água limpinha! Nesse tempo de calor vô lá quase todo dia de
tarde!...
Ah! A Lurdinha! Tinha tanto tempo que não a via... Só
porque tinha que ir pra escola e estudar a mãe não mais pedia a ele pra ir à
venda. Até se esqueceu de ficar com vergonha quando a Lurdinha viu seu cavalim
mocho.
Voltou para casa pisando nas nuvens. Tudo muito bom
demais. Cavalim gordinho. Lurdinha cada vez mais bonita e alegre. Cabelos dela
mais compridos e aloirados... Unhas pintadas... Pernas bonitas... Olhos
esverdeados... Ah! Que olhos!... Pena que ela era grande. Pena que ele era
pequeno. Tinha que crescer depressa. E o Zeca Pagodinho, o mandrião namorado
dela? É... O Pagodinho era grande problema. Será que ela tava ainda namorando
com ele? Bem que o moço andava meio sumido... Qualquer domingo menino pensava
ir lá na venda para ver se via os dois juntos...
Naquela noite dormiu pensando na Lurdinha. Agora
sabia como fazer para vê-la sempre que quisesse. Era só ir pro córrego, nos
fundos da casa dela, à tardinha. Mas o que falar para ela? Que desculpa dar?
Melhor era não falar nada para não ter que dar desculpa nenhuma. Era chegar
primeiro, amoitar e esperar. Bastava-lhe vê-la. Enquanto tanta gente procura e
faz tanta coisa para ser feliz, para ele, menino de nove anos, felicidade era
ver sua Lurdinha.
Tarde custou a chegar. De manhã pensou e sonhou de
todas as maneiras em tudo quanto é canto. Nem no ingazeiro conseguiu ficar por
muito tempo. Inquieto. No almoço a mãe estranhou quando quase não comeu. Ainda
mais que era qualquer gororoba não. Taioba com torresmo e mandioca que ele
nunca dispensava, além do de sempre. Sem contar suco de pitanga e de murici.
- Tá cum treta, moleque? Se num qué comê, cai fora!
Vai levá lavage pros capado!
Deu a comida pros bichos e, antes que a mãe
inventasse qualquer outra coisa, se mandou. Andou pelo mato, passou pelo
córrego, comeu umas pitangas... Comeu banana nanica de um cacho que tinha
escondido, ainda no pé... Subiu no ingazeiro... Deu um passeio no cavalim... Não
agüentava mais. Foi pro córrego da Lurdinha esperar. Cada vez mais inquieto,
coração precipitado. Bem perto do poço uma cepa duma mangueira. Subiu nela e se
preparou para esperar, falando consigo mesmo:
- E si ela num vier? E si oiá pra riba e me vê
montado feito besta nesse gaio de arve? Ondé que vô enfiá a cara? O que vô
falá?
Desceu de fininho e foi se enfiar na moita de bambu,
entre a mangueira e o ipê. Lá a Lurdinha nunca ia vê-lo. Ninguém o acharia. Mas
coração continuava estrebuchando, aos pulos dentro do peito. Até falta de ar.
Sensação de que fazia coisa errada mas vontade de ver sua paixão era maior que
qualquer censura da consciência. Esperou uma hora... Duas... já estava todo
desanimado da vida quando ela apareceu. Coração acelerou tanto que chegava a
ouvir suas batidas misturadas ao som da passarada no mato em derredor.
Ela foi chegando, subiu numa tábua ao lado do poço,
olhou para trás como que para espiar se não vinha ninguém e tirou o vestido.
Até aquela pecinha de baixo tirou. Por essa menino não esperava. Esqueceu de
pensar que as pessoas não nadam de roupa. Nem chegou a imaginar que a Lurdinha
ia tomar banho pelada. E ele lá, no meio da moita de bambu, boquiaberto,
embasbacado, assustado, sem saber se olhava ou se fechava os olhos. Coração
batendo forte, fazendo aquele barulhão. Até a respiração parecia alta demais.
Ah se ela descobrisse!... Se o bigodudo do padrasto dela soubesse então!... Era
capaz de matá-lo. Não devia ter feito isso... Mas agora era tarde. E já que
estava ali... Criou coragem e começou, meio sem jeito, assim com o canto do
olho, a examinar sua paixão. Nunca tinha visto mulher pelada. Nem chegara a
pensar como seria uma. Lurdinha foi a primeira.
Ela ficou ainda por uns instantes em cima da tábua
enquanto amarrava os longos cabelos cacheados no alto da cabeça. Menino sentiu
vontade de passar a mão nos peitos dela. Desejo de alisar aquele corpo bem de
mansinho, fazendo carinho. Assim como alisava o pêlo do cavalim. Começa a
sentir sensação estranha. Mudança no corpo. Latejando lá. De repente ela vira
pro lado onde ele estava. Quase desmaiou de susto. Pensou que ela o tivesse
visto. Aí é que ele vê direito a coisa. Pretume entre as pernas dela.
Cabelo!... A coisa, a pimbinha tinha cabelo!... Que coisa mais estranha!...
Então mulher é assim? Meu Deus do céu! Nenhum dos seus companheiros tinha
contado isso. Mas que corpo bonito o de uma mulher, mesmo com aquela cabeleira!
Que vontade de passar a mão nela! Até alisar aqueles cabelinhos!...
Lurdinha entra na água. Nada pra lá, nada pra cá,
vira e mexe, mexe e vira e sai da água. Menino está tão encantado, tão
apalermado, que não arreda olho da moça. Pintinho quase pegando fogo dentro da
calça. Duro como nunca. Olhos esbugalhados para não perder nenhuma cena. Sem
nem piscar, observa. Ela pega o sabão e suavemente começa a passá-lo no corpo.
Entre as pernas fica branco de espuma. Alisa os cabelinhos com a mão e depois
começa a passar o dedo devagarinho naquela coisa toda. Menino entende nada.
Muito menos aquele ar de satisfação depois de certo tempo. Ela pula na água,
nada mais um tiquinho, veste a roupa e vai embora morro acima.
Menino custa a criar coragem para sair da moita.
Chega em casa meio assustado e com fome. Cabecinha tá longe...
- Ondé que tu andô, menino? Que cara é essa? Parece
que viu sombração? Vem cumê logo pras menina arrumá a cozinha inhantes de
escurecê!
Não podia facilitar com a mãe. Ela descobriria tudo
fácil, fácil. Seu segredo era brabo. Ninguém nunca ia saber. E ele não ia mais
voltar lá. Muito perigoso.
Mas aquela imagem ficou na cabeça noite toda. Nos seus
sonhos só via Lurdinha. Bonita e
sorridente vinha nua para o seu lado e o abraçava. Ele alisava sua pele
devagarinho... Ela aceitava com olhinhos fechados e respirando forte. Urubua da
mãe dela, gorda e desajeitada como um saco amarrado, é que veio atrapalhar. Deu
o maior escândalo. Aprontou o maior berreiro ao ver a filha nua nos braços dum
menino. Só que ele já estava grande, do mesmo tamanho da Lurdinha.
- Não, sá Violeta! Carece gritaria não! Eu vô fugi
co'a sua fia, sua urubua véia!
Acordou assustado, alarmado com a coragem do seu
sonho e nem conseguiu mais dormir até amanhecer. Passou dia jururu, com sono e
com vontade de rever aquela imagem de mulher nua.
Num domingo, na hora de rezar lá na igrejinha, ficou
sabendo que a Lurdinha não tava mais namorando com o Zeca Pagodinho. Padrasto
dela tinha pego os dois, no escuro, na porteira do curral, se abraçando e
furunfando, e aprontou o maior fuzuê. Até tiro quis dar. A coisa só não ficou
pior porque o Pagodinho deu no repa.
Aulas recomeçaram. Mesma história. Morro do Pião
cavalim só passava a galope. Quando caía toró aquela dificuldade. Capa de chuva
velha e furada vasava água. E no frio? Menino quase entanguia. Para esquentar,
paletozinho de saco tingido. Esquentava nada. Ilusão. Mas até chegar à escola
capa de chuva, mesmo sem chuva, ajudava a ficar quentinho.
Quando vinha chuvarada menino ficava aterrorizado.
Sozinho, naquele toró, entre ventania, relâmpago, enchurrada e até enchente, ia
indo. As vezes meio sem rumo, de tanta água na sua frente. Cavalim refugava,
empacava e virava para trás se o vento era do contra.
Noite chegando. Morro do Pião...
- Vamo cavalim! Anda digero! Cê sabe que tenho
medo!... Num empaca não! Vira pra frente pelo amô de Deus! Oia só os relampo e
as trovuada! Se uma faísca caí em riba
de nóis a gente morre! Culpa sua, seu disgramado! Vai, desrabeia e vamo
s'imbora! Já tá pispiano escurecê, seu capeta! Perdão, meu Deus!... Vai, num
embroma não, cavalim! Upa, cavalim! Vão bora amiguim!...
Chuva diminuia, cavalim pegava rumo de casa. Também
louquinho pra chegar. Negócio dele era alergia a pingo d'água na cara.
Duro era buscar cavalim no pasto quando ainda
escuro. Tempo de frio então dava até dó, muito dó. Calçado era precata velha ou
chinelo de dedo feito de pedaço de pneu e couro cru de boi. Orvalho molhando as
pernas ainda quentes do calorzinho da cama. Calças curtas. Frio entrava pelas
pernas e ia até os ossos a ponto de doer. Alguma vez menino chegava onde tinha
uma vaca deitada no meio do pasto e a obrigava a se levantar. Menos vaca
mojano. Covardia. Aí aproveitava a quenturinha que a dita cuja deixava na terra
e no capim. Dava pra esquentar os pés um tiquinho. Só melhorou um pouco quando
o pai ganhou as botas do soldado. Calçava as botas gigantes e ia todo
desengonçado à procura do cavalim. E este sabidinho, sabidinho, tinha dia que
se escondia. Se engrotava. Um Deus nos acuda pra achá-lo. Como o danadinho era
meio escurinho, naquele lusco-fusco, qualquer baixume de árvore virava
esconderijo.
Já sabia ler. Lia de tudo. Escrevia também. Escreveu
até um bilhete para Lurdinha declarando sua paixão. Só que não teve coragem de
fazer a entrega e nunca o mostrou pra ninguém. Mas o pedaço de papel, recortado
caprichosamente de um saquinho que veio com açúcar, estava guardado. Bem
guardado no buraco do derradeiro esteio do paiol. Ninguém acharia.
Num domingo, na igrejinha, menino ouviu uma fofoca
que o colocou de orelha em pé. Foi assim chegando de mansinho quando ouviu o
nome da Lurdinha. Era a Cotinha falando pra Lilica:
- É, ela teve que acabá o namoro mode o padrasto. O
véio tá dano em riba dela. O Zeca Pagodinho, discabriado, teve que caí fora se
num quisesse vê a coisa preta... Mas, cá entre nóis, cumade Lilica, num é pra
fazê fofoca não, ouvi falá que o Zeca Pagodinho tá encontrano c'a Lurdinha
escondido...
- Nó, cumade! Vixi Maria! Isso é coisa perigosa!
Tadim dos dois! Ela tão bonitinha!... E esse padrasto, heim!... É mió a gente
fazê de conta que nunca oviu falá dessas coisa! Bem diz o ditado que cavalo
véio gosta de capim novo, né?
Menino foi saindo de fininho. Sentindo saudade
danada da sua Lurdinha. Nunca esqueceu imagem dela no córrego. Quando pensava
naquela visão coração apertava mais de saudade. Resolveu que no outro dia,
segunda-feira, quando voltasse da escola, almoçaria, daria uma desculpa pra mãe
e iria ver a Lurdinha tomar banho. Tava tudo dando certo até que, logo depois
do almoço, começou uma briga com as meninas. Puxa o cabelo duma, chuta a outra,
leva uma mordida da terceira e foi aquela tribuzana danada. Mãe veio. Já com o
chicote.
- Foi ele mãe! Ele que começou! - disse uma.
- O trem bão! Ele vai tomá uma coça das boa! - falou
a outra.
- Mãe, elas tão culiada só pra me vê levá borduada!
Elas só veve pra caçuá de mim! Num me bate não, mãe!...
Falou as últimas palavras já gritando ao levar as
primeiras chicotadas.
Naquele dia foram quinze. Cambada contou uma por uma
em coro. Dor maior não era por fora. Cada chicotada representava uma
violentação à sua vontade, ao seu querer, ao seu amor. Aquele tantão de
chicotadas lhe atingiam a alma e a deixavam lambuzada de revolta e de dor. Dor
era mais suave só quando pensava na sua Lurdinha. Mãe só parou porque ele foi
pulando e chorando pra debaixo do ingazeiro. Aí chicote enrolava nos galhos e
batia com menos força no seu corpo. Uma das lapadas atingiu-lhe o olho
esquerdo. Inchou na hora. Mal conseguia abrí-lo. Doía e ardia. Vomitou toda a
comida e um pouco da sua revolta. Já no seu esconderijo no meio do mato,
remoendo sua mágua, passava a mão pelo corpo sentindo os calombos provocados
pelas chicotadas. Logo acima do olho um caroço era a lembrança mais evidente da
surra. Dor de dentro ficaria, mesmo depois de muito tempo que sarasse a
calombeira.
Menino passou a tarde toda escondido no meio do
mato. Soluçando até adormecer deitado nas folhas secas caídas no chão e
juntadas em forma de ninho que ele mesmo fez. Acordou sobressaltado ouvindo bem
longe as meninas chamando por ele. Anoitecer vespava. Com fome e com sede.
Corpo dolorido. Foi chegando pra perto de casa. Bem que não queria chegar, mas
medo da noite o impelia. Entrou na cozinha e uma mana falou:
- Ih mãe! Oia o ôio dele!
Mãe veio e olhou. Menino viu no olho dela o
arrependimento.
- Vai tomá banho! Já tem água quente! Bota na bacia
e lava o corpo todo bem lavado! Esfrega bem pra tirá o macuco dos pé!
Tramelou a porta do quarto e, segurando a lamparina,
olhou-se no espelhinho pregado na parede. Olho roxeado. Ficou pelado. Também o
corpo com muncado de marcas roxas. Tudo muito dolorido. Acabou de tomar banho.
Mãe veio passar água com sal nas marcas que tinha produzido. Para sarar.
Arrependida. Notava isso pelo carinho dela. Só o que se passava dentro dele ela
não podia curar. Dor forte. Dor da revolta do fraco contra quem tem todos os
direitos e pode tudo. Até espancar o filho por coisas insignificantes.
Tutaméias.
Foi pra cama com os olhos cheios d'água. Antes de
dormir, derramou copiosas lágrimas sobre o travesseiro. Sem nenhum barulho pra
ninguém reclamar. Ver Lurdinha só amanhã talvez. Se tudo desse certo. Pensar
nela fez seu coração esquecer das tristezas e adormecer de mansinho. Aquela
sonhação. Variava até.
No outro dia tava mais dolorido ainda. Mãe veio
acordá-lo para ir pra escola. Levanta e começa a chorar. Desculpa que doía.
Ela, vendo seu olho roxo, resolveu deixá-lo ficar em casa. Não queria mesmo era
os colegas e as professoras vendo as marcas no seu corpo. Vergonha.
- Num vai pra escola mas num vai vagabundá pr'aí
não. Vai dibuiá mio até a hora do almoço. De tarde socá arroz e café no minjolo.
Tá bão?
- Tá bão, mãe!
Mais um dia sem ver a Lurdinha. Saudade doía. Fugir
não dava. Um dia as coisas podem mudar...
Quando retorna à escola, marca no olho tava na cara.
Clara e evidente.
- Que foi isso no olho, filho?
- Caí em riba dum toco, professora!
- Ah!... Um toco!...
Viu que a professora não acreditou. Mas continuou a
vida como se nada tivesse acontecido. E pra todo mundo que perguntava:
- Caí num toco...
Quando a indagação era de algum menorzinho, menino
aproveitava para dar um troco:
- Num é da sua conta, sô espiculadô!
Na sexta-feira conseguiu ir pra moita espiar sua
Lurdinha. Chegou e logo depois veio ela. Como da outra vez a moça tirou a roupa
bem devagarinho, cerimoniosamente, e entrou na água. Peladinha, peladinha...
De repente ele ouve um assobio diferente do canto de
qualquer passarinho que conhecia. Mais um assobio e mais outro. Lurdinha também
tinha ouvido. Saiu rapidamente da água e pôs o vestido. Calcinha deixou debaixo
do pé de juá. Ela dá uma assobiada bem parecida com as anteriores. Do outro
lado do córrego aparece o Zeca Pagodinho. Menino levou o maior susto. Vontade
de sair correndo. Não pode. Queria se enfiar dentro de um buraco. Não dá.
Negócio é ficar quietinho, quietinho e não dar bandeira.
- Ocê num podia tê vindo, Zeca!...
- Eu queria vê ocê Lurdinha!
- E si ele descobre? Pode te matá! Ele anda
prevenido!...
- Quá! Num m'importo não. Ele num gosta de mim
devera purque sô pobre, Lurdinha! Mas quero casá c'ocê. Vamo fugi! A gente
isala. Ninguém mais fica sabeno de nóis!
- Posso não, meu nego. Tenho dó de largá minha mãe
sozinha co'ele. Quando eles senti minha falta é capaz até do safado matá ela.
Ocê sabe o que ele qué de mim, num sabe?
- Diacho! E num sei? É por isso memo, pra mode desse
disgramado, que a gente tem que fugi!...
- Não, Zeca. Num vô não. Mais pra frente pode sê.
Agora não!
Zeca Pagodinho atravessa o córrego num lugar mais
estreito, vem e abraça a Lurdinha bem na frente do menino. Que susto! Que
inveja! Menino se encolhe mais ainda, tampa a respiração e segura o coração
para não ser ouvido. Vê os dois se beijando e falando baixinho.
- Vai s'imbora Zeca! É perigoso! E óia, ele já sabe
que nóis tá se encontrano. O bisca espiculô a mãe. Só num sabe é que é aqui no
corgo!
- Eu vô mas vorto! Todo dia qui dé eu venho. Num
tenho medo dele, ocê sabe!
- Sei, Zeca. Mas vai, vai! Num me deixa mais
agoniada!...
Em dois pulos ele atravessou o córrego e sumiu no
mato. Lurdinha também foi embora. Menino agora era dono de grande segredo.
Tinha que manter boca de siri. Se alguém descobrisse o que sabia sobraria para
ele. Então as coisas não estavam boas para sua Lurdinha. Coitada não tinha pai
que a defendesse. Bruaca da mãe dela não atacava nada. Só tinha banha. E o Zeca
Pagodinho!... Menino começou até a ter dó dele. Achou o moço com cara de herói.
Mas achou graça quando ele falou que não tinha medo do sô Severo. Um nanico
daqueles frente ao bitelo do sô Severo era de fazer dó. Uma chapuletada do
velho na cabeça dele e era uma vez o Zeca Pagodinho...
Foi pra casa preocupado. Será que ele podia fazer
alguma coisa? Negócio era ficar de orelha em pé para ver como andavam os
acontecimentos. Não podia perder a reza no domingo na igrejinha. Era lá que as
informações da roça eram trocadas.
No sábado a mãe o manda ir à venda buscar querosene
pras lamparinas. Vai pensando em ver a Lurdinha, mas cora de vergonha e de medo
por tê-la visto pelada. Vergonha por ela não saber e medo de que ela
descobrisse sua arte. Prefere que ela não esteja na venda. E não estava mesmo.
Chega a tempo de ver o sô Severo conversando assim meio baixo com o Celsão, o
maior fuxiqueiro das redondezas no dizer de todo mundo.
- Pois é Celsão, espáia pr'aí que o diabo do rapaz
tá andano armado mode matá ela...
- 'Xa cumigo, sô Severo! Faço quarqué coisa qui o
sinhô mandá. A vida é assim, hoje lhe faço um favô, amanhã é a sua vez...
- Sei, sei... Ocê vai tê sua recompensa. Mas caça um
jeito de num me botá no meio da história, heim?
Nisso sô Severo vê o menino encostado na porta.
- O que q'ocê qué, ô moleque?
Custou a sair:
- Que-que-que... Creosene!
Pegou o litro cheio, mandou pôr na conta e... Pernas
pra que te quero. Não quis nem olhar para trás. Ficava até arrepiado de olhar
pro padrasto da mulher mais bonita do mundo.
No domingo, logo depois da reza, na hora das
fofocas, menino andou de roda em roda à cata de novidades. E achou. O Celsão
tava falando pro Tié, os dois se ajeitando pra fazer pitinho cada qual.
- Vem cá, Tié! Fica dicoque aqui comigo que vô ti
contá um negócio. Cê sabe que as coisa pra Lurdinha num tão ino bem, né?
- Aié? Que qui é?
- Oia só: vi dizê que o Zeca Pagodinho tá andano
armado quereno matá ela. Ela num qué mais namorá ele e ele falô:"ô ieu ô
ninguém"!
- Tadinha, né sô?
- Oia, Tié, isso fica só entre nóis, tá?
- A não, sô! Larga mão disso! Piciso disso não! Tá
pensano qui sô espaiadô de futrica? Careço disso não, uai!
- Deixa de bobage! Sei disso! O que num quero é
pobrema pro meu lado!
Menino roda, ouve outras conversas. Vê o Tié
contando a mesma história pro Tati. Assim bem baixinho pro negócio não se
espalhar.
- Vixi Maria! Antão o trem tá feio, sô!
- Num é que tá, cumpá Tati?
- Vamo dicocá'li. Dá a paia! Oia cumpade, sei não...
Acho que tem treta d'arguém aí. Ela gosta dele. Ela findô namoro sujigada...
- É memo, né sô? Ma negosiguim, cumpá Tati, as muié
d'hoje, quando começa a botá batão nos beiço vira tudo confusão. Mamá cresceu,
xuranha tá cum coçume, sai de baixo que é fria. Ninguém güenta. É tentação de
tudo quanto é banda!...
A Jandira com a Maria da Nica também estavam no
mesmo assunto. Menino gostava de ficar perto das duas não. Maria da Nica era
mal afamada. Todo mundo falava dela. Diziam que não se comportava direito. E,
segundo o ditado do pai, povo não inventa, povo só aumenta. Menino mesmo já tinha
visto a moça entrando com o João Geada numa moita de assa-peixe, assim bem
perto da venda, na noite da festa de São Sebastião. Ficaram lá tempão danado.
Só sairam depressinha quando começou uma tribuzana de chuva. A Jandira, assim
muito de culeio com a Maria da Nica, devia também estar aprendendo coisas. Não
demora tá na boca do povo.
Parece que só a Lurdinha é que não sabia que o Zeca
Pagodinho queria matá-la. E o Zeca Pagodinho... Uai, o Pagodinho também não
sabia disso! Idéia dele era outra, fugir e casar com ela. Sô Severo é que
estava confundindo as coisas. Tinha treta aí.
Menino foi dormir muito preocupado. O que podia
fazer para ajudar a Lurdinha? Não podia falar nada para ela. Primeiro que ela
não tava nem aí pra ele. Era pequeno e ela grande. Raramente eles proseavam. Da
mãe dela ele até tinha medo. Contar em casa era surra na certa. Iam querer
saber dos mínimos detalhes e quando soubessem... A tunda ia ser dada pelo pai.
Seria daquelas de brocha de canga. Deixam marca por um mês. Não. Não ia falar
nada pra ninguém. Não tinha quem o compreendesse...
Bilhete para a Lurdinha ainda tá guardado no
esconderijo secreto. Vida na escola continua. Cavalim só passa Morro do Pião a
galope. Brinquedo de toda a cambada na escola é jogar bolinha de gude na hora
do recreio. Menino perde todas. Hora de ir na licença é de amargar. Meninas têm
casinha. Meninos vão ao pastinho da escola, no meio da moita de cipó de São
João. Quem vai lá volta cheio de carrapatos e com os pés sujos de merda. Várias
vezes professora tem de mandar um ou outro lavar o pé. Carrapatinhos, daqueles
bem amarelinhos, vão subindo, subindo... Quando se encontrarm lá em cima, nas
coisas, começa o sofrimento. Cada picada é vontade louca de coçar. Cruza as
pernas, descruza as pernas, mas coceira continua. Levar a mão, nem pensar. Em
cada carteira um menino e uma menina. Professora faz assim pra ninguém
conversar. É um santo silêncio. Mas coceira é braba. Só quando montar no
cavalim e tocar pra casa, quando não houver ninguém à vista, é que dá pra abrir
a calça e tirar os carrapatinhos já redondinhos, cheios de sangue. A marca
fica. Coceira também. Vários dias.
Numa quarta-feira, quando já não agüentava mais de
saudade, menino pensou em ir ver a Lurdinha no córrego. Mas era meio tarde e
ela já devia estar lá. Portância não. Ele ia devagarinho, no meio da cana
brava. Chegaria perto e ela nem ia notar. Bem antes da cerca notou algo
estranho. Sô Severo tava no quintal, assim meio escondido debaixo dumas
jaboticabeiras, olhando pro córrego. Justamente pro lado onde a Lurdinha
nadava. Menino agachou e ficou quietinho. Esperou um pouco para ver os
acontecimentos. Vê sua paixão subir devagarinho, cabeça baixa, em direção à
casa. Estava triste. O velho sumiu debaixo das jaboticabeiras. Nisso menino
olha para baixo e vê um vulto pulando o córrego. Era o Zeca Pagodinho, tinha
certeza. Eles continuavam se encontrando escondido. Quando Lurdinha chega em
casa o padrasto sai da moita e vai pro lado do pasto buscar as vacas. O velho
viu os dois se encontrando. Tava na cara. Negócio ficando feio. Cada vez pior.
Menino custou a dormir à noite. Curiango cantou
agourento várias vezes. Virou e revirou na cama. Sonhou muito. Teve pesadelos.
Zeca Pagodinho matando Lurdinha. Outra hora o rapaz afogava sô Severo no córrego.
De repente dona Violeta, igual um colchão amarrado ao meio com corda de
bacalhau, aparece e descobre o menino na moita de bambu vendo Lurdinha pelada.
Acordou assustado, suando muito. Mãe nem precisou chamá-lo pra escola. Na hora
certa levantou, foi e pegou cavalim. Estava arriando o bicho quando a mãe
gritou:
- Tem cubu e umas quitanda na gamela aí berano a
tuia. Come!
- Quero cumê nada não mãe! Num tô com fome!
Enquanto ia pra escola prometia a si mesmo que à
tarde veria a Lurdinha. Muita saudade. Queria vê-la de todo jeito. Pelada, como
da outra vez.
A tarde estava no seu posto de observação dentro da
moita de bambu. Quietinho, ouvindo o canto da passarada como se fosse uma
homenagem à sua deusa que ia chegar. Demorou, demorou...
De repente, o barulho de um galho seco quebrado. Não
era do lado que a Lurdinha vinha sempre. Esperou quietinho. Levou um baita
susto quando, a dois metros de distância, passa por ele o sô Severo com uma
bitela duma foice toda lustrosa. Atravessa o córrego num pulo e se esconde
atrás de uma moita de taboa. De lá o velho fica olhando o poço também. Menino
engole seco. Fica igual pau fincado. O medo de ser descoberto e o medo que tem
do padrasto da cabrocha fazem-no suar frio.
Lurdinha chega. Mesmo ritual. Tira a roupa, passa a
mão pelo corpo suavemente, alisa aqueles cabelinhos e entra na água. Velho tá
espiando do outro lado. Velho sem vergonha. Olhando pelada aquela que podia ser
a filha dele. É muito safado mesmo... Menino está aflito. Unica coisa que tem
de fazer é ficar quieto. Suando frio. Muito. Fica com a roupa toda molhada de
suor quando lembra do Zeca Pagodinho. E se ele vier hoje? Não pode. Deus não
vai deixar... Se vier, vai passar pertinho de onde o sô Severo tá escondido. E
aquela foice...
Lurdinha sai da água, pega o sabão e começa a
passá-lo pelo corpo. Olha pra tudo quanto é lado, como se estivesse esperando
alguém. Está preocupada. Com certeza. Menino tem tempo ainda de contemplar
embevecido aquele corpo bonito antes dela entrar n'água novamente.
De repente o assobio. Mais outro e outro. Três
assobios. Como da outra vez que o Zeca Pagodinho apareceu. Era ele. Mas a
Lurdinha não respondeu. Silêncio. Só a passarada cantava. Bem rapidinho chega o
Pagodinho, todo trapiado. Passa correndo perto de onde o sô Severo tá
escondido, pula o córrego e vem pra cima da tábua, na beirada do poço.
- Lurdinha, vim te buscá! Arranjei a gaita! Agora a
gente pode ir pra bem longe! Vamo!...
- Zeca, meu nego, num posso, ocê sabe! E ocê num
devia tê chegado agora sem o meu sobio. Tô pelada e quero saí d'água. Oia pra
lá!
Zeca Pagodinho se vira de costas. Quando ela ia
pegar o vestido, gotas d'água escorrendo por aquele corpo macio e suave, menino
vê o velho sair correndo da sua moita, pular o córrego e levantar a foice para
pegar o rapaz. Lurdinha também já o vira e só teve tempo de entrar na frente
dando um grito tão forte que calou toda a passarada em volta. A foiçada do
velho já tava armada. E ele não parou o golpe.
De uma golpeada só torou o pescoço da Lurdinha assim
como o pai podava um assa-peixe verdolengo no meio do pasto. Quando ela caiu no
chão, toda lambuzada de sangue, o Zeca Pagodinho já tava pulando o córrego de
uma pulada só e sumia no mundo. O assassino foi na água, lavou a foice e uns
respingados de sangue na barra da calça. Ficou um tempão olhando pro corpo nu
desfalecido da Lurdinha. Depois, calmamente, foi embora.
Menino saiu do mundo. Desmaiou.
De tensão.
De medo.
De
cansaço.
De dor.
Quando acordou, assim ainda meio fora de si, nem
teve tempo de ter medo. Boquinha da
noite. Saiu da moita. Lurdinha morta ainda tava lá. Pescoço preso ao corpo por
fandanguinhos de pele. Sobre ela algumas flores de ipê bem amarelinhas que
tinham caído depois do acontecido. Menino vai pra casa com as pernas moles.
Meio abobado. Corpo todo doendo. Chega chorando. Mãe vem acudir. Febre. Febre
tão alta que tava até delirando. Deita e desacorda. Passa a noite variando,
gemendo. Chega até a gritar. Mãe não dorme. Dá chá de tudo quanto é ramo. Não
adianta nada. Amanhece perrengue, sem dizer coisa com coisa. Vizinhança vem
visitar. No terceiro dia mãe entra com a Joaninha no quarto conversando
baixinho.
- O que o menino tem, sá? Cês descobriro?
- Quá! Que nada Joaninha! Pensei que era só
difruncho, mas não!
- O que ocê deu pr'ele?
- Dei chá de tudo quanto é trem. Valeu de nada.
Jasmim... Maneturé... Mentrasto... Sabugueiro... Jubeba...
- Oia, sá, isso é maloiado dos bão! Menino bonito.
Muita gente ruim. Pode mandá benzê na Maria Geroma. E bota manjiricão e arruda
atrás da porta. É bão. Espanta quarqué oio ruim...
- E a acontecença, Joaninha? Será que foi ele?
- Foi o Zeca Pagodinho. Todo mundo sabe que foi ele.
Tem muito tempo que aquele cabra queria matá ela. Tava só esperano ocasião.
- A não sá! Coitada, né Joaninha? Tão nova e tão
bonita! Cumé que é o destino, né? Tinha tantos pr'ela escoiê!...
Menino não queria ouvir mais. Afunda o rosto no
travesseiro e chora amargamente lembrando da sua Lurdinha que nunca mais vai
ver. Chorando e soluçando baixinho relembra do que aconteceu. Todo mundo pensa
que foi o Zeca Pagodinho. Só ele sabe que a verdade é outra. Mas não pode
contar a ninguém. É caso de morte. Também ele pode morrer se abrir o bico. Um
dia talvez descubram a verdade.
Febre aumenta. Menino não tá bom. De vez em quando
melhora e piora outra vez. Tá com mania de escrever. Mãe trás caderno e lápis.
Tudo que escreve rasga em pedacinhos, levanta da cama, corre ao fogão e põe no
fogo. Tem dia que lavanta, vai ao quintal e volta pra cama rapidinho. Um dia
foi pro paiol e ficou lá escrevendo tarde toda. Mãe não contraria. Acha que
febre endoidou menino. Não come. Depois de dez dias, assim magrinho, assim
franzininho, com febre que nenhum chá curava, variando, gemendo, chorando e
sofrendo, menino morre.
Paixão.
Tristeza.
Dor.
Dois anos depois pai reforma o paiol. No buraco do
último esteio, acha dois papéis. Num, recortado caprichosamente de um saquinho
da venda, dizia:
"Lurdinha. Eu gosto de ocê. Quero casá cocê.
Ocê num gosta de mim? Espera eu creçê, tá? Se ninguém deixá nóis foge. Se ocê
num fugi eu morro. Sem ocê eu num fico"
No outro pedaço de papel, rasgado de uma folha de
caderno, o pai leu:
"Lurdinha. Ocê foi embora. Sem ocê eu num fico.
Vô imbora tamem. Lá nóis se encontra. Vô ficá grande igual ocê. Vamo vivê
junto. Todo mundo pensa que foi o Zeca Pagodinho. Só eu sei a verdade. Só eu vi
o sô Severo ti dano a foiçada. A dô foi tão grande qui dueu nimim. Foi naquela
hora qui cumecei a morrê tamem."
Pai pega os dois papéis e rasga em pedacinhos pra
ninguém ver.
Menino não pode ter paixão.
Menino não sente nada.
Menino não sabe de nada.
Menino já morreu.
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